sexta-feira, 15 de julho de 2011

ESCOLA E CONHECIMENTO: uma relação em crise

Por Ednéia Angélica Gomes

Se é certo que crianças e jovens brasileiros encontram, atualmente, mais facilidades para concluir o ensino fundamental e médio, é também verdade que esse tempo maior de escolarização não tem garantido a ampliação das suas aprendizagens. Assim, um dos aspectos mais evidentes da atual crise da educação escolar brasileira é a dificuldade da maioria dos estudantes no desenvolvimento de habilidades básicas como leitura escrita e cálculo.
Tal evidência é em parte camuflada pelos baixos números da reprovação escolar apresentados nos últimos anos e pelas avaliações sistêmicas que “maquiam” os índices, apresentando um crescimento, ainda que modesto, do Brasil nos rankings mundiais. Entretanto, não é preciso ser especialista, basta ter um filho matriculado numa escola pública, para perceber a gradual decadência da escola brasileira no que concerne às aprendizagens fundamentais.
Como em toda crise, não existe apenas um, mas, em conjunto, diversos fatores interferem na configuração do problema. Entre esses fatores podemos citar a falta de interesse político na melhoria efetiva da qualidade da educação e a desvalorização profissional do docente. Entretanto, a meu ver, mais importante por relacionar-se com uma série de outros aspectos da crise, está o crescente processo de esvaziamento do conhecimento escolar. Esse processo encontra as suas bases na ideia de que o conhecimento deve ter uma utilidade imediata, deve servir para o sujeito realizar algo no mundo, agora. Tal perspectiva, além de ser cara a uma organização social baseada na produção e no consumo que necessita de força de trabalho acrítica para perpetuar-se, encontra sustentação em diversos aspectos da pedagogia moderna.
Num texto de 1957, Hannah Arendt já denunciava três ideias-base que, segundo a autora, desencadearam medidas catastróficas que precipitaram a educação americana numa grande crise. Por incrível que pareça, essas ideias continuam influenciando as metodologias e o currículo da educação brasileira.
A primeira ideia “é a de que existe um mundo da criança e uma sociedade formada pelas crianças, que estas são seres autônomos e, na medida do possível se devem deixar governar por si próprias.” (ARENDT, 1957) Segundo essa visão, a infância é a fase da espontaneidade, do prazer e, portanto, qualquer cobrança por disciplina, esforço e continuidade é vista como uma agressão. Dessa forma, a autoridade, a experiência e os conhecimentos dos adultos são anulados. A escola tem que se adaptar ao mundo infantil disfarçando os conhecimentos escolares em jogos, em que a brincadeira e o barulho substituem o silêncio e a concentração necessários à aprendizagem. Por outro lado, a ideia de que as aprendizagens devem partir dos interesses das crianças institui objetos de conhecimento que só são válidos para a infância. Ora, se a educação é exatamente uma forma de mediar o contato da criança com o mundo, como ela pode ser possível se educamos a criança num mundo fictício, apartado do nosso?
A segunda tem a ver com o fato de a pedagogia ter se tornado “uma ciência do ensino em geral ao ponto de se desligar completamente da matéria a ensinar.” (ARENDT, 1957) A pedagogia moderna está muito mais voltada para os processos de aprendizagem do que para os conhecimentos. Assim, o melhor professor não é aquele que possui maiores conhecimentos sobre a sua disciplina, mas sim aquele que entende os processos pelos quais o aprendizado se dá. O conteúdo mesmo dessa aprendizagem foi banalizado e resulta que muitas vezes o professor conhece muito pouco daquilo que ensina.
A terceira ideia “é a de que não se pode saber e compreender senão aquilo que se faz por si próprio.” (ARENDT, 1957) Na prática substitui-se o aprender pelo fazer. Assim, o saber transforma-se em saber-fazer e os estudantes aprendem a confeitar um bolo, reformar um brinquedo, fazer um vídeo, a se virar no mundo das coisas práticas, entretanto, são afastados do pensamento reflexivo e não dão conta de uma análise mais sistemática da realidade da qual fazem parte.
Essas ideias direcionaram os currículos brasileiros para o cotidiano dos alunos, suas vivências práticas, seus tempos de vida, seus processos de socialização. E, apesar de, em alguns aspectos, as propostas curriculares sugerirem a extrapolação desse cotidiano com conhecimentos que ampliem o universo conceitual dos alunos para além do local e do imediato, a precariedade das condições de trabalho do professor, o excesso de tarefas, a violência e a indisciplina enfrentados na maior parte das escolas, aliados a uma formação insuficiente e à falta de tempo para estudo e preparação das aulas, fez com que, na prática, matérias relacionadas ao rigor do pensamento, à realidade física e social, imprescindíveis para uma compreensão mais ampla do mundo fossem negligenciadas.
Dois outros fatores têm contribuído para uma desvalorização crescente dos conhecimentos escolares e dos professores, diante da sociedade como um todo. Um deles é a superexposição dos jovens à informação. Ora, se o mais importante é saber-fazer algo que interessa e agora, a televisão e a internet estão muito mais bem preparadas que a escola para essa tarefa. O outro diz respeito à utilização da escola como objeto de políticas públicas eleitoreiras. Cada vez mais as funções da escola estão sendo transformadas e serviços típicos da assistência social como programas de saúde, alimentação, lazer, esporte e cultura, têm ocupado os espaços escolares. Sem menosprezar a importância de tais programas, acredito que a especificidade da escola enquanto instância de difusão de conhecimentos está sendo relegada a um segundo plano.
Diante desse quadro, a grande parcela de jovens que depende das instituições de ensino público para aprender a ler, escrever e calcular é privada desses conhecimentos. O que faz com que a educação escolar continue a perpetuar as desigualdades, malgrado todo o discurso oficial que insiste em apresentá-la como fator de equidade social. O pragmatismo e o imediatismo que substituem o pensamento crítico produzem trabalhadores moldados para o mercado ao mesmo tempo em que impedem que a perversidade da estrutura social e política do país seja revelada.

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